Translate

Print Friendly and PDF

17 dezembro 2015

Institutas 35

“… Mas é falsa sua opinião de que a eleição só começa a ser eficaz quando abraçamos o Evangelho, e que daqui toma toda sua força e vigor. É verdade que, no que nos diz respeito, recebemos do Evangelho a certeza da mesma; porque, se tentássemos penetrar no decreto eterno e na ordenação de Deus, aquele profundo abismo nos tragaria. Mas, depois de que Deus nos manifestou e deu a entender que somos seus eleitos, é necessário que subamos mais alto, para que o efeito não sufoque sua causa. Porque que há de mais absurdo e (irrazoável) que, quando a Escritura nos ensina e afirma que Deus nos iluminou à medida que nos elegeu, esta claridade cegue de tal maneira nossos olhos que nos recusemos a olhar para nossa eleição?… Devemos, pois refrear esta temeridade com a sobriedade da fé, para que Deus nos seja testemunha suficiente de sua graça oculta, que nos revela em sua palavra; contanto que este canal, pelo que corre a água em grande abundância para que bebamos dela, não impeça que a verdadeira fonte tenha a honra que lhe é devida.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIV, parágrafo 3)



“… Portanto, se tememos naufragar, acautelemo-nos com grande cuidado e solicitude de dar contra esta rocha, contra a qual não pode chocar sem que se siga a total ruína e destruição. E, ainda que esta disputa da predestinação seja temida como um mar perigosíssimo, no entanto, navegar por ele e tratar dela é bem seguro e, atrevo-me a dizê-lo, deleitável; a não ser que alguém queira se meter no perigo de propósito. Porque assim como aqueles que, para estar seguros de sua eleição, penetram no secreto conselho de Deus sem sua Palavra, dão consigo num abismo do qual não poderão sair; do mesmo modo, pelo contrário, os que a buscam como se deve e conforme à ordem que a Palavra de Deus nos mostra, tiram dele grande consolo. Sigamos, pois, este caminho para buscá-la. Comecemos pela vontade de  Deus e terminemos pela mesma…
… A este respeito, Bernardo se expressa muito a propósito. Depois de ter falado dos réprobos, diz estas palavras: 'o propósito de Deus permanece firme, a sentença de paz está assegurada sobre os que o temem, dissimulando seus males e remunerando seus bens, para que, de uma estranha maneira, não somente seus bens, mas mesmo seus males, convertam-se em bem. Quem acusará os eleitos de Deus? A mim me basta somente, para possuir a justiça, ter propício e favorável Aquele contra quem pequei. Tudo quanto Ele determinou não me imputar é como se nunca tivesse existido' [Bernardus, In cant. Serm. 23, 15 MSL 183, 892C]. E pouco depois: 'ó lugar de verdadeiro repouso, ao qual não sem razão poderia chamar câmara na qual Deus é visto, não como perturbado pela ira ou angustiado pela preocupação, mas na que se conhece que sua benevolência é boa, agradável e perfeita. Esta visão não espanta nem assombra, mas antes aquieta; não suscita curiosidade alguma cheia de inquietude, mas a apazigua; não turba os sentidos, mas os aquieta. Eis onde deveras se consegue repouso: que Deus, estando apaziguado, nos tranquiliza, porque nosso repouso é vê-lo e tê-lo aplacado' [Ibidem, 16 col. 893AB]...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIV, parágrafo 4)

“… Portanto, não se diz que aqueles que Deus tomou como filhos seus, Ele os elegeu em si mesmos, mas em Cristo (Efésios 1:4); pois não podia amá-los, nem honrá-los com a herança de seu reino, senão fazendo-os partícipes dele. Orar, se somos eleitos nele, não acharemos a certeza de nossa eleição em nós mesmos; nem sequer em Deus Pai, se o imaginarmos sem seu Filho… Se desejamos algo mais do que ser considerados filhos e herdeiros de Deus, seja necessário que subamos mais alto que Cristo. Se tal é nossa meta e não podemos passar mais adiante, quão desencaminhados andamos, ao buscar fora dele o que já conseguimos nele, e só nele podemos achar!...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIV, parágrafo 5)

“Quanto à sentença de Cristo, 'muitos são chamados, poucos os escolhidos' (Mateus 22:14), aplicam-na e entendem-na muito mal. Mas esclarecer-se-á, se distinguirmos dois tipos de chamamento; divisão que, segundo já expusemos, é evidente. Porque há um chamamento universal com o que Deus, mediante pregação externa de sua Palavra, chama e convida a si indistintamente a todos, inclusive aqueles a quem ela está proposta como odor de morte e matéria de maior condenação. Há outro [chamado], particular – do qual não faz partícipe a maioria, mas somente a seus fiéis – quando, pela iluminação interior de seu Espírito, faz que a palavra pregada enraíze em seu coração...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIV, parágrafo 8)

“… De cem pessoas que ouvem o mesmo sermão, vinte o aceitarão com pronta fé, e as demais não o levarão em consideração, rir-se-ão dele, rejeitá-lo-ão e condená-lo-ão...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIV, parágrafo 12)

“… Sendo, pois, assim, não nos dê vergonha falar como o faz Agostinho: 'Deus bem poderia converter a vontade dos maus em bem, uma vez que é onipotente. Sem dúvida, poderia. Por que, então, não o faz? Porque não o quis! Mas, por que não o quis, só Ele o sabe' [Agostinho, De Genesi ad literam XI 10, 13 MSL 34, 434]...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIV, parágrafo 13)

“… Ao ouvir isso, os ímpios se queixam de que Deus abusa de suas pobres criaturas, exercendo sobre elas um cruel e desordenado poder, como se estivesse zombando. Mas nós, que sabemos que os homens são culpados de tantas maneiras perante o tribunal de Deus que, se fossem interrogados sobre mil pontos não poderiam responder satisfatoriamente a um sequer, confessamos que os ímpios não padecem de nada que não seja por julgamento justo de Deus. Que não possamos compreender a razão, devemos suportá-lo pacientemente; e não temos de nos envergonhar de confessar nossa ignorância, quando a sabedoria de Deus se eleva até o alto...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIV, parágrafo 14)

“… Conclusão: depois de muito discutir e de acumular razões de um lado e de outro, é preciso concluir como Paulo, cheios de estupefação ante tal profundidade; e, se certas línguas desenfreadas vomitam seu veneno contra isso, não nos envergonhemos de exclamar: 'Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?!' (Romanos 9:20). Porque Agostinho diz muito bem que aqueles que medem a justiça de Deus pela dos homens agem muito mal.
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIV, parágrafo 16)

-----
Último capítulo (XXV) do Livro 3: A ressurreição final

“… Eis porque a fé é algo tão raro no mundo: porque nada é mais difícil para a nossa preguiça do que transpor esses inúmeros obstáculos e seguir adiante, até a palma da vocação celeste. Ao grande cúmulo de misérias por que somos cobertos, juntam-se os escárnios dos homens profanos, que acometem contra nossa simplicidade, quando nós, ao renunciar de espontânea vontade às facilidades da vida presente, parecemos procurar uma bem-aventurança que nos é desconhecida, como se perseguíssemos uma sombra fugidia. Finalmente, somos obsideados, por cima e por baixo, pela frente e por trás, por tão violentas tentações que nossos espíritos não seriam capazes de suportá-las a menos que, desprendidos das coisas terrenas, nos entregássemos à vida celestial, que é tão distante de nós em aparência. Razão pela qual aproveitou de fato o Evangelho aquele que está acostumado à contínua meditação da ressurreição bem-aventurada.
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXV, parágrafo 1)

Os filósofos antigos disputaram acirradamente sobre o último fim dos bons, e até brigaram entre si; mas nenhum, exceto Platão, reconheceu que o sumo bem do homem é a união com Deus...
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXV, parágrafo 2)

“… E, assim, fiquemos atentos a este tema [a ressurreição] de máxima seriedade, para que o passar do tempo não nos traga o cansaço. Por essa razão, retardei o que devia tratar sobre a ressurreição até este lugar, parar que os leitores aprendam a se elevar mais alto, depois de terem recebido a Cristo como autor de sua total salvação, e para que saibam que está vestido de imortalidade e glória celestial, a fim de que todo seu corpo seja conforme sua cabeça; como o mesmo Espírito Santo muitas vezes nos propõe o exemplo da ressurreição na pessoa de Cristo.
É coisa difícil de crer que os corpos consumidos pela putrefação hão de ressuscitar no final dos tempos. E, assim, ainda que muitos filósofos tenham afirmado que as almas sejam imortais, a ressurreição da carne foi aprovada por poucos. E, ainda que não tenham nenhuma desculpa, com isso somos avisados, no entanto, de que esse tema é uma coisa mais árdua do que o senso humano pode compreender.
Para que a fé supere um obstáculo tão grande, a Escritura vem a nosso auxílio de duas maneiras: uma, na semelhança de Cristo; outra, na onipotência de Deus…… Abordo brevemente coisas que poderiam ser tratadas muito mais extensamente e que merecem ser ornadas num estilo mais brilhante. Confio, porém, que os leitores piedosos hão de encontrar nestas poucas palavras matéria suficiente para edificar sua fé...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXV, parágrafo 3)

“Quanto ao que dissemos, que, para termos a prova da ressurreição, temos de dirigir nossos sentidos à imensa potência de Deus… Portanto, não há nada menos coerente do que considerar aqui o que é possível ocorrer naturalmente, já que se nos apresenta um milagre inestimável, que faz desaparecer todos os nossos sentidos em sua magnitude...
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXV, parágrafo 4)

“E, ainda que fosse conveniente que as mentes dos homens se ocupassem desse tema continuamente, eles, como se, no entanto, quisessem abolir toda memória da ressurreição, chamaram à morte o fim de todas as coisas e a destruição do homem… Certamente, esse estupor bestial grassou por todos esses séculos, e até penetrou na própria Igreja; porque os saduceus se atreveram a pregar publicamente que não existe ressurreição (Marcos 12:18; Luas 20:27; Atos 23:8), e até que as almas são mortais.
Mas, afim de que essa crassa ignorância não lhes sirva de desculpa, eles sempre tiveram diante dos olhos, pelo próprio instinto da natureza, alguma imagem de ressurreição. Pois para que aquele santo e inviolável costume de sepultar os mortos, senão como penhor de uma nova vida? E não se pode dizer que isto nasceu de um erro, uma vez que a prática da sepultura vigeu entre os santos patriarcas desde sempre. E Deus quis que este mesmo costume se mantivesse entre os gentios, para que, oferecida a imagem da ressurreição, despertassem de seu torpor…
… Quão loucamente deliram aqueles que temem atribuir a Deus uma excessiva crueldade se afirmarem que os réprobos foram condenados a uma pena eterna, é algo evidente até para os cegos. Pois dizem que Deus cometeria grave injúria se privasse de seu reino os que, por ingratidão, se tornaram indignos dele! E que seus pecados são temporais. Admito-o; mas a majestade de Deus e mesmo sua justiça, que eles violaram ao pecar, é eterna...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXV, parágrafo 5)

“… Entretanto, uma vez que a Escritura nos ordena em toda parte que estejamos pendentes da expectativa da vinda de Cristo, e que nos diz que a coroa difere da glória até esse momento, contentemo-nos com estes limites que nos foram prescritos pela divindade: que as almas dos homens pios, ao concluir seu trabalho de luta, vão para um descanso bem-aventurado, onde com grande alegria esperam a fruição da glória prometida; e que assim tudo fica em suspenso até que Cristo apareça como Redentor...
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXV, parágrafo 6)

“Tenho vergonha de empregar, em coisa tão clara, tantas palavras; mas peço aos leitores que suportem comigo este incômodo pacientemente, a fim de que as mentes perversas e desavergonhadas não encontrem brecha alguma por onde penetrar para enganar a gente simples…
Em primeiro lugar, deve-se reter o que já dissemos: que ressuscitaremos com a mesma carne que temos agora, quanto à substância; mas a qualidade será outra… E, como Deus tem à sua disposição todos os elementos, nenhuma dificuldade impedirá que ordene à terra, às águas e ao fogo que devolvam o que parecia ter sido consumido por eles...
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXV, parágrafo 8)

“… Pois embora ouçamos que o reino de Deus há de estar cheio de claridade, de alegria, felicidade e glória, todas estas coisas estão entretanto muito afastadas de nossos sentidos e como que envoltas em enigmas, até que venha aquele dia em que o Senhor nos manifestará sua glória, para que o contemplemos face a face… Mas, por que é necessário que o fervor do desejo por ela [a ressurreição] se acenda em nós por certo gosto de sua suavidade, demoremo-nos principalmente neste pensamento: se Deus, como fonte viva que nunca se esgota, contém em si a plenitude de todos os bens, nada fora dele pode ser esperado por aqueles que se esforçam em alcançar o sumo bem em toda sua plenitude e a perfeição da felicidade, como somos ensinados em vários passos...
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXV, parágrafo 10)

“… Suponhamos que vivemos na região mais abundante do mundo, na qual não falta nada que possa dar-nos satisfação. Quem é que não se vê muitas vezes impedido ou proibido por suas próprias enfermidades de usar dos benefícios de Deus? Quem não se vê forçado a abster-se de seus bens e jejuar, por causa de sua intemperança? De onde se segue que o cúmulo da felicidade é a fruição simples dos bens de Deus, limpa de todo vício, ainda que não nos sirvamos deles para o uso desta vida corruptível…
Pois são muito poucos dentre a grande multidão dos homens que se preocupam saber como se vai ao céu; mas todos desejam saber antes do tempo o que é o que se faz lá. Quase todos são preguiçosos e lentos para se apresentar para o combate; e, entretanto, já fantasiam para si triunfos imaginários.
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXV, parágrafo 11)

“… Sobre este tema, o salmo 90 contém uma sentença memorável: que, mesmo que Deus extermine, só com seu olhar, todos os mortais e os reduza a nada, estimula, no entanto, os seus servos, por mais temerosos que vivam neste mundo, para incitá-los a que, mesmo sobrecarregados sob o peso da cruz, persistam (Salmos 90:7ss), até que Ele seja tudo em todos (1 Coríntios 15:28).
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXV, parágrafo 12)